Abstrato
Há 11 anos
"A ARTE EXISTE PORQUE A VIDA, POR SI SÓ, NÃO BASTA" Ferreira Gullar
Tenho lido A Grande Feira com grande interesse. Luciano Trigo descreve com muita propriedade os porões do mercado da arte. Ele cita, por exemplo, o "artista" Damien Hirst que colocou num aquário um tubarão mergulhado em formol. Essa "obra de arte" foi vendida por milhões de dólares e, não muito tempo depois, o peixinho precisou ser substituído por estar se decompondo. Outra passagem bem curiosa de Hirst eu trancrevo: "Sobre as telas que assina, Hirst já declarou que são pintadas por assistentes: 'Não estou a fim de me preocupar com isso. A pessoa que melhor tem pintado pra mim é a Rachel. Ela é brilhante. O melhor quadro meu que você pode ter é um quadro pintado pela Rachel.'" (pág.89). Que vergonha! Talvez o fato mais curioso seja o de que um diálogo aberto sobre esse assunto não aconteça no Brasil. Parece um tabu. Não se fala. Cala-se a respeito. Me pergunto: e o artista de verdade? aquele cara que vaza pelo seu trabalho, que não consegue ser se não for pela pintura, pela música...? Onde é que estamos? "é arte aquilo que o artista diz que é... é artista aquele que o sistema aponta como artista." (pág.89).
Acabo de voltar de um delicioso bate-papo no Contraponto. Pra quem não conhece, trata-se de um espaço de interlocução sobre arte, psicanálise e filosofia. No momento o Contraponto acolhe a experiência fotográfica de Marcelo Greco. Como é de costume, durante o período da exposição faz-se um bate-papo sobre o trabalho exposto, sua criação e muitos outros fatores que participam do processo de cada artista. Marcelo Greco é um artista que cresceu vendo pinturas sendo feitas por pintores da própria família. Conviveu de uma forma particular, pelo que me pareceu, com a obra de Vermeer que era reproduzida por sua avó. No centro da conversa estavam Simonetta Persichetti, Sergio Fingermann e Greco. Um público de aproximadamente 60 pessoas. A unanimidade foi o quanto a arte está sendo colocada de escanteio em prol de uma multiplicidade de estímulos. Apela-se tremendamente para o espetáculo e não se favorece o silêncio da contemplação. Não se pode fruir a obra de arte em meio a tantos estímulos visuais e, muitas vezes, de outras ordens. Como frisa Sergio Fingermann, hoje andamos em grande velocidade pela estrada e não vemos a paisagem; para vê-la é necessário parar no acostamento, não correr, parar, parar para ver. Creio que essa metáfora se aplica a todas as artes e a toda a vida louca que levamos hoje. Particularmente, o trabalho de Marcelo Greco é tocante. A exposição está no Contraponto - Rua Medeiros de Albuquerque, 55. Maiores informações: contato@contraponto55.ato.br
Estivemos ontem no Teatro Alfa assistindo ao espetáculo musical O REI E EU. A história é muito conhecida, agradável e politicamente correta. A música é boa. A orquestra muito correta, apesar do achatamento causado pela amplificação. Os cantores... Foi exatamente isso que mais me encantou. Havia ali uma verdadeira "arca de Noé" em se tratando de técnicas diversas. Cantores sem qualquer impostação, cantores com formação lírica e, ainda, cantores Belting, que é a técnica utilizada em musicais. Ambas conviveram muitíssimo bem. Claro que se distinguia perfeitamente cada uma delas, fato que apenas somou. Dos protagonistas posso dizer que encantaram. Tuca Andrada, o Rei, Claudia Netto, Anna e Luciana Bueno, Lady Thiang, estiveram muito bem. Falo particularmente da minha querida amiga Luciana Bueno (fotos), uma das grandes cantoras líricas desse país. Luciana é uma artista generosa. Não se poupa em nada, nunca. Está ali inteira, corpo e alma. Voz linda, marcante, personagem consistente e carismática. Foi uma bela noite!
Pra começar, indico duas excelentes gravações: o cd, com Renata Scotto, Placido Domingo, Renato Bruson e James Levine, é uma gravação vigorosa e cheia de poesia; o DVD é um registro maravilhoso da bela produção do Metropolitan Opera House. Cenários, figurinos e direção de cena de Franco Zefirelli. Imperdível. A regência precisa do maestro Giuseppe Sinopoli, dá o tom majestoso e cheio de nuances. Cornell MacNeill, grande intérprete do Barão Scarpia. A Tosca de Hildegard Behrens tem tudo o que é necessário à personagem. Há ainda o vídeo do segundo ato com Maria Callas. Esse é indispensável. A boa notícia é que esses registros são encontrados no youtube e eu devo postar alguns belos momentos nos próximos dias.
No jornal O Estado de São Paulo de 27 de fevereiro de 2009, Nelson Motta escreveu um belo artigo intitulado “O fim da música”. Em poucas linhas ele diz que a música, mesmo antes do advento da internet, se esgotou. Diz que no exato minuto em que escrevo, milhares de músicas estão sendo jogadas na internet, criadas por qualquer pessoa, músico ou não; diz também que apenas uma pequeníssima porcentagem pode ser chamada de música. Fala dos grandes momentos musicais, especificamente dos vocais, óperas, musicais, a boa mpb... Quanto ao funck, diz que nada pode ser inventado de menos musical, pois este já não tem mais melodia e nem harmonia.
Difícil não concordar. Eu apenas chamaria a atenção para o momento particular em que vivemos, em que nossa cultura se vai como grãos de areia aparados por uma mão aberta. A música tornou-se, com o passar dos anos, produção. É preciso produzir música. É preciso produzir música que o povo goste. Falando especificamente do povo brasileiro, é preciso compor músicas que nosso povo ignorante goste; que faça com que nosso povo ignorante se divirta e se divirta sem pensar. A “música” tem que entrar e pronto.
Pelo que entendo, arte e diversão não são sinônimos. Arte sempre foi o retrato da civilização, da cultura, do pensamento. Seria bobo pensar em Bach, Mozart, Beethoven? Creio que não. Como também não é bobo pensar em Jobim. Esses mestres pensaram a música como a construção de um universo em si; colocaram ali sua visão particular de mundo, do mundo que os cercava. Por que razão continuam atuais? Por que, apesar da distância que nos separa, a música dos grandes compositores do barroco, do classicismo, do romantismo e de tantos outros “ismos”, ainda nos toca?
Tive a oportunidade de ver alguns estudos com pacientes de vários tipos e níveis de patologias, mostrando o quanto a boa música os auxilia nos tratamentos de suas doenças. Li que este tipo de música ajuda os pacientes a ordenarem melhor seus pensamentos, a construirem uma real possibilidade de cura. Obviamente não estou dizendo que música é capaz de curar, por exemplo, o Alzheimer, mas há melhora inquestionável em tais quadros.
O excesso de “produtos”, os novos “artistas” fabricados instantaneamente pela mídia, e seu conteúdo pobre e podre deveria nos fazer pensar por que não existe mais, ou melhor, por que a escassa música de qualidade não chega até nós. Por que nos tornamos reféns de “tapinhas” de amor que não doem? Onde estão os Artistas? Se eles existem, por que não lhes é dado espaço? Por que artista hoje em dia tem que ter peitos, bunda, ser sarado, ter nome de frutas... ser BBB?
Se estamos aprisionados por tudo isso, alguma coisa fizemos. Atrevo-me a dizer que paramos de pensar. Isso na música e, creio, em todas as artes. Poderíamos ser melhores, não!
Ressonância é uma palavra que tem feito parte dos meus dias. No canto lírico, espaço das metáforas e fantasias, é usada para designar o melhor lugar da voz, onde a voz é em sua plenitude. A voz, esse ser estranho que nos habita, se utiliza de todo o corpo para ressoar. É isso o que buscamos: nossas caixas de som, onde a voz é naturalmente amplificada. Tenho aprendido que as cores também têm ressonância; são como que acordes musicais que encontram seu espaço e podem conviver em plena harmonia e expansão. Ah, essa pintura é de Samson Flexor!
Lá pelos meus 20 anos, iniciando a carreira de cantor, preocupado com o futuro das artes no Brasil, tomei conhecimento de um homem que, foi, mesmo sem sabê-lo, importante na minha formação cultural: José Mindlin. Seu amor pelos livros; seu grande desejo de "inocular" o vírus do amor pela leitura; seu interesse pela cultura deste país, enfim, foram tantos os desejos e realizações de José Mindlin! Tive o grande prazer de vê-lo em algumas de minhas apresentações. Em uma delas ele me disse que havia sido um prazer me ouvir mas que também sentia por saber que eu iria para fora do país. Não fui. Outra vez, tomando um café e fazendo hora para ir ao lançamento do livro de um amigo, vejo-o entrar no Viena. Fomos, minha mulher e eu, até ele e nos sentamos juntos. Conversamos sobre o número de estrangeiros que são convidados, ano após ano, a se apresentarem em nosso país, tomando o lugar de artistas nacionais. Já com seus 90 anos, completamente lúcido, extremamente gentil, nos contou um pedacinho de sua história pela luta em prol de nossa cultura. Nós o ouvíamos falar com a tranquilidade e sabedoria que lhe eram peculiares. Um homem sábio. Apesar de não estar mais entre nós, seu José continuará sendo um exemplo e sua obra sempre estará presente, testemunhando que por aqui passou alguém que fez a diferença.
Saindo desse triângulo Carreras Domingo Pavarotti, gostaria de apresentar outros cantores por quem tenho grande apreço. Vou fazer isso em doses e sem ser em sequência. Hoje apresento o tenor italiano PIER-MIRANDA FERRARO. Nascido em 1924, Ferraro teve seu apogeo nos anos 1960/70. Atuou várias e várias vezes no La Scala e em outros importantes teatros europeus. Aqui no Brasil podemos encontrar facilmente uma de suas gravações: La Gioconda, com Maria Callas. Importante frisar que em 60/70 estavam em atividade outros dois monstros sagrados: Del Monaco e Franco Corelli. Ferraro ficou, assim, um pouco escondido pelo brilho dos colegas, mas não fica a dever nada a eles. Conheci Ferraro pessoalmente. Aliás, tive o privilégio e a honra de ser seu aluno. Ganhei a Bolsa Virtuose do Ministério da Cultura e fui aceito pelo maestro Ferraro. Nossos encontros se davam em seu estúdio na cidade de Milão. Aos poucos fui conhecendo aquele artista que optava sempre pelo modo mais limpo de interpretar e pela não complicação de algo tão abstrato como a voz. Afetuoso e generoso, Pier-Miranda sorria com os olhos de uma criança, um sorriso puro e limpo pra um homem que, naquela época, 2001, contava com seus 77 anos. Meus momentos favoritos eram aqueles em que ele demonstrava como eu deveria fazer determinada frase. Sua voz estava lá, impressionantemente intacta, potente, uma faca, como dizemos. No dia 18 de janeiro de 2008, após o almoço em família, Pier-Miranda foi fazer a sesta. Morreu dormindo. Deixa para mim e para tantos outros, a lembrança do homem/cantor que foi.
La Bohème, de Giacomo Puccini, é uma das minhas óperas favoritas. A primeira que ouvi. Meu pai me deu uma gravação (acima) que, mais tarde, vim a saber que é maravilhosa. Conheço bem a ópera, várias de suas gravações e vídeos, mas tive uma experiência muito bonita. Cantei La Bohème em forma de concerto. A música de Puccini é repleta de melodias, frases de beleza inigualável, texto pra lá de romantico. Estávamos, os cantores, no meio da orquestra, mais precisamente entre o maestro e as primeiras estantes das cordas. Desde os primeiros ensaios com a orquestra tive a impressão de pertencer, literalmente, à música. Uma sensação forte de ser, talvez, uma cor daquele quadro tão lindo e extenso. Acho que ali entendi que ser solista é apenas dar uma contribuição para algo muito maior; é colocar alguns tijolos numa construção.
Pavarotti, Domingo, Carreras... As pessoas sempre me perguntam quem é o melhor dos três. Questão de gosto. Cada um teve seu período glorioso. Placido Domingo teve, e ainda tem, uma carreira longeva; Pavarotti com aquela voz divina; o Carreras antes da leucemia era, provavelmente, não só a mais bela voz como também um grande músico. Pavarotti e Carreras faziam parte de um time de cantores mais preocupados com suas performances vocais mas, me pergunto, com aquelas vozes, pra quê se preocupar com outra coisa? Domingo, no decorrer dos anos, mostrou que tem uma técnica sólida, musicalidade excepcional e uma desenvoltura cênica invejáveis. Por essas razões, Placido se tornou não só o grande tenor que é, como também, o homem mais poderoso da ópera mundial.